“E por avareza farão de vós negócio…” (2 Pedro 2.3ª)
Minha juventude foi marcada por dois tipos de leitura: Bíblia Sagrada, com apreciação especial pela escatologia, e obras literárias de ficção, de autores como Júlio Verne (Francês 1828-1905), Emílio Salgari (Italiano 1862-1911), Aldous Huxley (Inglês 1894-1963), George Orwell (Inglês 1903-1950), Érico Veríssimo (Brasileiro 1905-1975) e Isaac Asimov (Russo 1920-1992), entre outros.
No cinema, apreciava as ficções que apontavam para um futuro, ora caótico e distópico, resultante da ação humana desordenada, ora utópico, resultante da genialidade criativa de alguns. A maioria desses filmes foram adaptações da literatura ficcional já mencionada e de muitas outras que não conheci na literatura.
Recentemente, em razão de uma coincidência de data ficcional, decidi rever o filme “No mundo de 2020”, lançado há 49 anos, em 1973, adaptado do romance de Harry Harrison e dirigido por Richard Fleischer. No elenco, o papel principal foi do ator Charlton Heston, seguido por uma constelação de nomes que mais tarde marcaram época no cinema.
O filme retrata o então longínquo ano de 2022 (Aqui a coincidência de data ficcional), mostrando o planeta caótico e irreconhecível. A devastação apresentada, em uma Nova York superpopulosa, resultava do aumento da temperatura pelo efeito estufa, tornando a vida um verdadeiro inferno. Em contraste com a situação infernal da quase totalidade da população, uma minoria de 1% vivia no luxo e na luxúria, isolados dos demais. O autor só não previu que as tecnologias estariam bem mais avançadas. Aliás, este é um detalhe em que a realidade do século 21 sempre superou qualquer ficção.
O que me leva a escrever este artigo, são os acertos observados “No mundo de 2020”. De tudo que li e assisti sobre as projeções ficcionais, talvez esta obra seja a que mais perto tenha chegado da nossa realidade em 2022. Destruição dos recursos naturais através da ambição de corporações que controlam os governos. Inflação no custo de vida para uma crescente maioria populacional que vai ficando sem a menor proteção social e de segurança alimentar.
Na ficção, “O mundo de 2022” apresenta uma geração que já não conhece mais a natureza, fauna e flora. O único alimento que ainda mantém as pessoas vivas, é de origem desconhecida para quem o consome. Distribuído pela megaempresa Soylent Corporation (O título original do filme, em inglês, é Soylent Green), os tabletes de proteína estão monopolizados, como negócio, pela corporação que controla a vida humana.
Embora o cenário caótico do filme não seja o desenho atual, o que ocorre, como princípio, é bem próximo do que foi imaginado. O crescente número de desabrigados, favelados, desempregados, moradores de rua, refugiados e os marginalizados que se amontoam famintos por todo lado, contrasta com o mundo em que vive os super-ricos, distante das massas humanas que se assemelham a zumbis.
Descontando os excessos ficcionais para causar maior impacto, tudo que o filme aborda, enxergamos hoje. A Soylente Corporation, fabricante dos tabletes coloridos, representa as megaempresas que concentram as riquezas através do capitalismo rentista neoliberal nas mãos de 1% da humanidade. Capitalizam as riquezas, ao mesmo tempo em que nivelam por baixo a população, socializando a miséria. No filme, com o passar do tempo o Soylente Green, juntamente com uma porção de água, se torna a única fonte de proteína para o povo.
Ainda que seja um spoiler, para quem pretende assistir ao filme, é necessário dizer o que vou dizer, para que não se perca a razão deste artigo. Ao investigar a morte de um dos grandes nomes da corporação, o detetive Robert Thorn (Charlton Heston), começa a incomodar a elite. Para comprovar o que está sendo feito, a morte do seu parceiro de trabalho, o idoso Sol (Edward G. Robinson), leva Thorn à descoberta que o deixa estarrecido acerca Soylent Green, disputado pela população esfomeada.
Ao seguir o cadáver do seu amigo, morto por eutanásia, Thor chega à usina de processamento onde fabrica o Soylente Green. O desfecho é macabro, mostrando que a megacorporação levava a população à prática do canibalismo: a matéria prima do “Soylente Green” era carne humana processada. Os cadáveres que se amontoavam, sendo transportados por caminhões de lixo não eram sepultados, nem cremados. Eram transformados em tabletes de proteína.
Os sites especializados em cinema dizem que a crítica da época do lançamento detonou o filme pela forma absurda que apresentava o futuro. Acreditava-se, em 1973, como alguns ainda hoje acreditam, que a democracia pode fazer do mundo um paraíso capitalista liberal. O filme, no entanto, apontava para um futuro extremamente distópico tratando como negócio, a vida humana e abordando temas controversos, como eutanásia, controle total centralizado e canibalismo.
Olhando hoje para os rumos em que a humanidade caminha, e para a escatologia bíblica que prevê o governo do anticristo, me convenço da veracidade profética. Para ilustrar e encerrar a conversa, vejo que a fragilidade da democracia e a falta de escrúpulos dos governantes e dos muito ricos, conspiram para a concretização dessa realidade distópica. Ainda repercute a sugestão de um governador, candidato a presidente, que sugeriu uma “ração humana” para a população carente. De um ponto de vista realista, somos reportados ao Soylent Green que, a princípio, não era feito de carne humana, mas de algas marinhas altamente proteicas e nutritivas. Por aqui, a princípio, na proposta do então governador, a matéria prima da ração humana seria restos de alimentos com prazo de validade estourando. Mas quem garantiria que continuaria assim?
A distopia, tanto quanto a utopia, são capazes de afetar o comportamento humano, para o bem ou para o mal.
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