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Um noivo ferido a caminho do altar

“Leais são as feridas feitas pelo que ama”

(Pv 27.6a)

 

Dentre as muitas memórias que carregamos em nossa caminhada cristã, nenhuma me fere tanto, e de forma leal, quanto o incidente que quase resultou no adiamento ou cancelamento do meu casamento.

 

Tudo começou com uma singular oração ao Senhor em janeiro de 1998, após ter intitulado pomposamente aquele ano como o “ano que orarei por uma transformação de caráter”. Na época morava em São Carlos/, cursando o segundo ano do doutorado na USP. Foi um pedido simples que fiz ao Senhor, que se repetiu ao longo dos meses, mas confesso que não estava preparado para as consequências de uma resposta do Altíssimo a essa oração. Sabe aquele velho ditado que diz “cuidado que o que desejas, pois poderás obtê-lo”? Pois é, meu pedido por maior humildade de caráter foi atendido.

 

Lembro claramente, do sentimento de então, de achar que só por fazer “tão humilde pedido” já demonstrava grande humildade de minha parte. Pedir algo “tão santo” fazia muito bem ao meu ego e não esperava de fato ser mais humilde do que já era. Como eu era bom aos meus próprios olhos e como eu estava errado. Estupidamente errado.

 

Aqui cabe uma explicação para que possam entender minha situação. Até o ano em questão sempre me considerei invulnerável, à parte dos outros mortais. Depender de outras pessoas sempre me soava como fraqueza e estava fora de questão. Demonstrar sinceramente gratidão ao ser acrescentado em alguma área, por alguém mais simples, era sempre uma dificuldade. Chorar, queixar-se de dores, mostrar-se fraco na presença de outros era impensável. Como cristão conseguia projetar uma bem-sucedida imagem de humildade, mas meu coração estava longe de sê-lo. Motivos para pensar assim tinha-os de sobra: raramente ficava doente, excepcional resistência a dor, nenhuma dificuldade para aprender de forma rápida e consistente qualquer assunto, estável profissionalmente desde os 22 anos, nenhuma aflição quanto à solidão, dor ou medo das pessoas, um grande apreço pelas próprias conquistas e um falar bem articulado. Era invulnerável em meu próprio mundo particular e o casamento que se aproximava seria a cerejinha que faltava no bolo de uma vida quase sem perturbações físicas.

 

A resposta à oração veio na última semana de outubro de 1998, pouco menos de cinco semanas para a realização do meu casamento. Claramente um presente adiantado do Senhor.

 

Certa noite, visitando minha noiva Elaine, para mostrar os convites do casamento, sem qualquer aviso prévio, fui tomado de dores fortes e excruciantes. Perdi totalmente o controle muscular e comecei a me debater e a contorcer-se. Elaine, assustada e com a ajuda das colegas da república, internou-me às pressas na Santa Casa de Misericórdia de São Carlos. Fui amarrado, sedado, anestesiado e mesmo assim continuei sentindo dores horríveis. O diagnóstico, após exames preliminares, apontou crise renal aguda, tendo como causa provável um minúsculo cálculo renal de dimensões menores que um grão de pimenta-do-reino. Resultado: eu deveria ser operado dali a quatro dias.

 

Com o passar dos dias as dores se intensificaram e os anestésicos e sedativos, que só poderiam ser administrados em intervalos de 12h, começaram a surtir menos efeito. Assim, a cada dia aumentava o tempo em que passava sentido dores. Até ao quarto dia aguentei firmemente o sofrimento físico. Em minha superioridade (e ingenuidade em relação ao caráter de Deus) achava que estava ali para falar de Deus para enfermeiras e doentes. Nem mesmo clamei ao Senhor pela abreviação das dores, certo dos propósitos messiânicos de minha estada no hospital. Tinha a firme certeza que as coisas se resolveriam facilmente, como tudo até então.

 

Conforme programado, fui operado e o minúsculo cálculo retirado. Foi o único momento da internação em que tive uma pausa total nas dores devido à anestesia peridural, mesmo com um pequeno incidente na administração da anestesia. Entretanto, as coisas não saíram como planejadas e as dores aumentaram em muito após a cirurgia. Comecei também a ter fortes dores estomagais e desarranjos intestinais. Não conseguia comer ou beber, e nem manter nada no estômago, sem regurgitar. Não conseguia dormir sem estar sedado, e não conseguia continuar dormindo quando os anestésicos perdiam o efeito. Passei a dormir menos de três horas por dia.

 

Com o agravamento do quadro pós-operatório minhas esperanças foram aos poucos sendo abaladas. O aumento da dor, a ineficácia dos sedativos e anestésicos e o receio dos médicos em me administrar drogas mais fortes, aos poucos foram minando minha autoconfiança e o sentimento de auto-suficiência. Os períodos de dor foram progressivamente aumentando e comecei a urrar e a socar paredes e ao meu próprio corpo para encontrar algum alívio. Ansiava como um viciado pela hora dos sedativos e implorava por mais quando as dores voltavam três horas depois. Eu era um homem como qualquer outro. E para piorar, um homem ferido.

 

Naquele quadro de dor e solidão, senti-me fraco, desamparado e com necessidade de ter alguém do meu lado, mas minha família estava no Amazonas e não podia ajudar. Minha noiva, por causa do horário restrito de visitas, não podia estar sempre no hospital e ainda havia pendências do casamento a se resolver. As lágrimas começaram timidamente a rolar, primeiramente durante as noites solitárias, sem ninguém à vista, em meio às dores e socos, depois abertamente na presença da minha amada.

 

No sétimo dia de internação comecei a apresentar um quadro generalizado de depressão. Parei de lutar contra dor e me entreguei sem reservas ao sofrimento. Não conseguia ingerir nenhum líquido e já não respondia às pessoas que me visitavam (o pouco de interação social que ainda tinha era com um senhor, professor da USP, que dividia comigo aquele quarto e que se encontrava em situação pior que a minha, com a bexiga em acelerado processo de deterioração, mas que estranhamente não reclamava das fortes dores). Não conseguia mais orar, nem pensar em Deus e nem mesmo lembrar como era a minha vida anterior. A dor era a única realidade, a única coisa que fazia sentido. Lembro-me vagamente da minha noiva tentando orar comigo, mas eu estava distante e as palavras me pareciam vazias. Naquela noite fui consumido pela dor e percebi a extensão de minha fragilidade, ignorância e soberba. Lembrei na madrugada da passagem do livro de Salmos que dizia "no dia da angustia clamo a Ti, porque me ouves". Clamei ao Senhor e me humilhei em Sua presença, mas as dores só aumentaram. À dor física acrescentara-se a dor da solidão e do sentimento do desamparo de Deus.

 

No oitavo dia, no finalzinho da tarde, os médicos se reuniram no quarto e nos comunicaram que fizeram tudo o que estava ao alcance, mas não sabiam a origem da dor. Teorizaram que o problema poderia ter evoluído de um quadro renal para neurológico, com alguma coisa a ver com os nervos da coluna. Não deram esperanças de melhora, apenas que teriam que administrar sedativos mais fortes para resguardar minha sanidade mental. Qualquer chão que ainda houvesse em meu coração fora retirado de meus pés. Não sobrara nada em que me apoiar. Senti-me como os de Laodicéia, pobre, cego, nu e miserável.

 

Naquela noite tive a última e mais dolorosa crise de dor. Estava quebrado e esmagado. Pedi à minha querida que orasse a Deus comigo. Com muito choro e humildade clamei novamente ao Senhor e disse-Lhe que estava em meus limites físicos e psicológicos. Reconheci Seu amor para comigo naquele hospital, pedi-lhe perdão por minha insensibilidade, auto-suficiência e autoconfiança e agradeci-O pela mulher que havia posto em minha vida e que me enchia de cuidados e da qual necessitava. A ferida da alma estava exposta a quem se dispusesse a ver e, como todo cancro aberto, a imundície começou lentamente a ser drenada.

 

No decorrer da oração comecei sentir algo em minha bexiga. Logo em seguida apresentei incontinência urinária. Pequenos pedaços de rim, sangue coagulado e líquido meio esbranquiçado e denso foram expelidos. Várias vezes isso aconteceu durante duas ou três horas. Tardezinha da noite sedaram-me com um novo e mais forte coquetel de drogas. Sabia que o efeito de tudo aquilo não duraria mais que umas três ou quatro horas e no início da madrugada estaria novamente me revirando no leito ou rolando pelo chão em dores. Por volta das 23h adormeci sob o efeito dos anestésicos.

 

Quando abri novamente os olhos estava amanhecendo. Dormira por quase seis horas, uma eternidade de tempo para minha situação. Angustiado, esperei a crise iminente de dor e esta não veio. Esperei mais um pouco e nada. Não havia mais dor. Nenhuma dor. Senti-me como que liberto de uma prisão infernal. Fiquei repetindo sem parar “não há mais dor!”.

 

Às sete da manhã trouxeram o café da manhã, várias vezes recusado até então. Com fome, depois de um jejum forçado, devorei com alegria o pão simples e o café com leite. Era uma verdadeira refeição e nenhum rei comeu algo com tanta gratidão e gosto com eu naquela hora. Às onze da manhã, ainda sem qualquer dor, e sem ter qualquer outra explicação, foi-me dado alta. Estava curado por fora e ferido por dentro. Não uma ferida purulenta e infecta, mas a que resulta depois que um grande tumor é retirado de seu corpo e que aos poucos o corte vai cicatrizando.

 

Era um novo e livre homem.

 

***

Algumas intervenções de Deus em nossas vidas são radicais e nos custarão muito. Pedi humildade e o Senhor atendeu da única forma que eu poderia entender: esmagando meu ego e ferindo meu corpo até que eu estivesse completamente derrotado. Como escreveu com sabedoria A.W. Tozer “um homem ferido é um homem vencido” e “não há nada como uma ferida para tirar-nos a auto-segurança, para reduzir-nos outra vez à infância, e tornar-nos pequeninos e incapazes à nossa própria vista”. Estas feridas não podem ser causadas pelo homem e nem por ele curadas. São feridas de tal natureza que seus talhos e vergões descem ao mais profundo da alma humana com o propósito de extirpar o que nos mantém doentes.

 

Leais são as feridas feitas pelo que ama, diz o Pregador. Não devemos temer a dor que vem do Alto, com o intuito de nos curar. Aquele que faz a ferida é também poderoso para curar, revigorar e restaurar o caído.

 

Um mês após sair do hospital casei-me com minha linda noiva em uma bonita cerimônia ao ar-livre. Todas as pessoas amadas, e que nos eram caras, estavam lá. No altar, emocionado, encontrava-se um noivo nervoso, ferido e restaurado pelo Senhor. Inesquecível!

 

A Ele toda a glória - Àquele foi um Homem de dores e que sabe o que é padecer!


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Kelson Mota T Oliveira, congrega na Igreja Batista Constantinopolis, Manaus AM.

Palestrante, professor, pregador, escritor com 2 livros publicados.

Responsável por um programa na ConstantTV sobre fé e ciência.

É casado e tem duas filhas alegres e curiosas.

Doutor em Físico-Química pela IQSC-USP, na área de Química Teórica/Mecânica Quântica Molecular.

Desde 1992 é professor de carreira (GQTC-UFAM/CNPq).

Atual vice-presidente da Sociedade Brasileira de Design Inteligente (TDI-Brasil).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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