A glossolália segundo Paulo em 1 Coríntios 14
- Carlos Magno
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1 INTRODUÇÃO
Alguns dias atrás, uma irmã me ligou de São Paulo desesperada, sem saber o que fazer, pois não aguentava mais a pressão que seu pastor e alguns irmãos da Igreja estavam fazendo contra ela. Queriam a todo custo que ela falasse em línguas. O pastor a incitava do púlpito para que ela manifestasse esse fenômeno, que, dizem eles, é sobrenatural. O pastor sempre a chamava para ir à frente para orar por ela. E, ao mesmo tempo, enquanto ele orava, em línguas “estranhas”, uma irmã também vinha por trás e falava em línguas em seu pé de ouvido. Era uma igreja pentecostal. Disse-lhe, então: “É muito simples, irmã. Procure uma igreja que viva e interprete corretamente a Bíblia”.
Nossa conversa enveredou por compreender o que Paulo diz em 1Co 14. O apóstolo Paulo sabe colocar as coisas em seus devidos lugares. Ele, como sábio timoneiro, calibra a rota da Igreja. No verso 1, ele estabelece o que realmente é importante para a igreja de Cristo: seguir o amor (fundamento da vida cristã, analisado em 1Co 13) e ser zeloso nos critérios de prioridade no uso dos dons espirituais (também já abordado em 1Co 12).
2 A CIDADE DE CORINTO
É sob essa ótica que Paulo confronta os dons da glossolalia e do profetizar. Embora não seja contra o falar em línguas (idiomas), desde que houvesse interpretação, ele argumenta em prol do profetizar. Paulo usa vários argumentos para corrigir as distorções carismáticas cometidas pela Igreja de Corinto.
Corinto era uma antiga pólis grega, situada no istmo do Peloponeso. Era banhada por dois mares: o mar Egeu e o mar Jônico. Ficava a 48 km de Atenas. Era uma das mais importantes cidades da época de Paulo, só comparável a Roma, Éfeso e Alexandria. Era um rico centro comercial. Lá estava o porto de Cencreia, um dos portos mais famosos da época. Estabelecia comércio marítimo com a Ásia e a península italiana. Os célebres Jogos Ístmicos, celebrados em honra do deus do mar “Poseidon”, aconteciam em Corinto. Também lá se encontrava o templo dórico de Apolo, um dos principais marcos históricos da cidade, construído em 550 a.C., no auge da riqueza da pólis. A antiga cidade foi parcialmente destruída pelos romanos em 146 a.C., mas em 44 a.C., foi reconstruída como uma cidade romana. No tempo de Paulo, estima-se que Corinto possuía cerca de 800 mil habitantes. Foi a capital da Grécia romana, habitada principalmente por homens livres e judeus (Santiago, [s.d.]).
Segundo Atos 18, Corinto era uma cidade cosmopolita e de natureza democrática, agregando uma rica variedade étnica. No verso 4, afirma-se que na sinagoga de Corinto havia judeus e gregos. Paulo e sua equipe trabalharam ali por 18 meses (v. 11). Paulo era um missionário estrategista. Escolhia as cidades mais importantes como centro estratégico de expansão missionária. Foi o que ele fez indo para Corinto.
Corinto era uma cidade cultural, de grande intelectualidade, mas também uma das mais imorais ou depravadas do mundo antigo. Lopes (2008) afirma que a palavra korinthiazesthai, viver como um coríntio, chegou a ser parte do idioma grego, e significava viver bêbado e na corrupção moral. Em Corinto a prostituição corria solta. Afrodite, a deusa do amor, era adorada e tinha o seu templo sede na Acrópole. Mil sacerdotisas trabalhavam como prostitutas cultuais nesse templo de Afrodite.
Corinto era também marcada como uma cidade onde havia muitos homossexuais. A adoração a Apolo induzia a juventude de Corinto bem como a juventude grega em geral a se entregar à homossexualidade. Talvez Corinto fosse o centro homossexual do mundo na época. Muitos membros da igreja de Corinto, antes da sua conversão, tinham vivido na prática do homossexualismo (1Co 6.9-11) (Lopes, 2008). Havia na igreja de Corinto divisões e práticas sexuais desregradas. A igreja de Corinto era uma igreja infantil e carnal.
É para a Igreja dessa cidade que Paulo escreve. O contexto histórico-religioso-cultural de Corinto acende uma luz para se entender o pensamento paulino ao pôr em ordem o culto dessa Igreja e, por extensão, das nossas também na atualidade.
3 DEZ MOTIVOS PARA SE PRIORIZAR O DOM DE PROFETIZAR E NÃO O DE FALAR EM LÍNGUAS
1. Uma questão de gramática: “a homens” x “aos homens”. “Não fala aos homens” (VFT). O emprego do artigo definido “aos homens”, quer dizer que esses “homens” eram pessoas conhecidas do autor, ou seja, Paulo estava tratando do falar em línguas dentro da igreja. Paulo não generaliza nem indetermina o auditório, “a homens” (como na versão A Bíblia Anotada, de Charles Ryrie, ou da Bíblia de Genebra, que traduzem “a homens”). Quem defende que Paulo fala da glossolalia (falar em línguas) como fenômeno extático[1] (língua dos anjos ou fenômeno sobrenatural), mas não como idioma humano, prefere usar versões das Escrituras que traduzem o verso 2 como “a homens”. A ideia é esta: Quem fala em línguas não fala a homens (a seres humanos), mas a Deus, o que está longe do pensamento paulino. Para a comunidade local, quando alguém fala uma língua estrangeira, é um “mistério”. Ninguém o entende. Quando Paulo afirma que “só Deus entende”, é preciso levar em conta o contexto linguístico. Paulo estaria dizendo o seguinte: Quem fala em outra língua na igreja, e naquela igreja não há intérprete, ou a própria pessoa não consegue interpretar, ninguém vai entendê-lo, só Deus, que sabe todas as coisas.
É uma simples questão de gramática. Diz o mestre Ivanildo Bechara (2009, p. 123), um dos mais importantes gramáticos da Língua Portuguesa no Brasil:
Do ponto de vista semântico e consequentes resultados nas funções gramaticais, está o primordial valor atualizador do artigo, de que decorrem os demais valores contextuais: o artigo definido identifica o objeto designado pelo nome a que se liga, delimitando-o, extraindo-o de entre os objetos da mesma classe, como aquele que já foi (ou será imediatamente) conhecido do ouvinte – quer através do discurso (que dele faz menção), quer pela “dêixis” (que o mostra, ordenando-o espacial e temporalmente), quer pelo contexto idiomático, no qual a palavra é, quando não ulteriormente determinada, nome de conceito ou de toda uma classe de objetos.
2. Da finalidade dos dons. Paulo não proíbe falar em línguas, mas defende que só deve ser falada na igreja se houver interpretação. Para Paulo, quem profetiza (prega a Palavra) é maior do que quem fala línguas, pois o propósito dos dons não é para uso individual ou egoístico, mas para a edificação da igreja, conforme Paulo já ensinara em 1Co 12.7: “Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil”. Paulo retoma esse princípio em 1Co 14.12: “Assim também vós, como desejais dons espirituais, procurai abundar neles, para edificação da igreja”.
3. A ilustração da flauta e da cítara. Se o musicista não tocar corretamente a flauta ou a cítara, ninguém saberá que música ele está tocando.
4. A ilustração do toque da trombeta. Se não se der o toque correto da trombeta, os soldados não vão entender que tipo de comando o trombeteiro está dando.
Mas o mais importante vem a seguir: a aplicação. Paulo ilustra, mas também aplica à igreja a verdade central dessas ilustrações: “Assim também vós, se com a língua não pronunciardes palavras bem inteligíveis, como se entenderá o que se diz? Porque estareis falando como que ao ar” (v. 9). Vê-se que Paulo se coloca contra a concepção do falar em línguas como sons desconexos, ininteligíveis, verdadeiras algaravias (algaravia = “linguagem confusa, confusão de vozes, coisas difíceis de perceber”).
Quando se analisa o chamado fenômeno de glossalalia atual, percebe-se claramente que não se trada de uma “língua” ou um “idioma”, mas uma tentativa meramente humana de construir uma língua artificial. Sabe-se que uma pessoa, para falar uma língua, precisa dominar no mínimo cerca de 3.500 palavras. Como eles não têm esse domínio, a tendência (também meramente humana, constatável pela ciência) é a de repetir fonemas ou sílabas: siriririri... que té té té té, roque dec cará cará cara tacá tacá...
5. “Não há vozes sem voz” (v. 10). Esse é um argumento notável para a época de Paulo. Paulo escreve: “Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é sem significação”. Pela primeira vez, no capítulo 14, Paulo usa outra palavra para língua ou idioma, que é “phonôn”; até o momento ele vinha usando “glossais”. No original grego, Paulo usa um trocadilho ou um jogo de palavras: “Não há vozes (phonôn) sem voz (aphonon)”. Paulo não é gramático, nem linguista, pois esta só veio a ser desenvolvida no início do séc. XX. As reflexões teóricas sobre a linguagem no mundo antigo ainda eram incipientes e precárias. Heráclito desenvolve a teoria do logos, no sentido de que palavra e o pensamento, linguagem e ser, são a mesma coisa. Demócrito, outro filósofo pré-socrático, segue pelo mesmo caminho. Platão (428-348 a.C,) em sua obra Crátilo, discute a natureza do fenômeno linguístico, sua origem, mudanças, diversidade, e se a língua devia ser entendida como algo natural ou convencional; na obra o Sofista, Platão já desenvolve análise de partes do discurso gramatical. Mais tarde, Aristóteles (384-322 a.C.), em sua Arte Poética, defenderá a natureza convencional da linguagem humana. A primeira tentativa de se elaborar uma gramática da língua, no mundo Ocidental, vem de Dionísio de Trácia (170-90 a.C.), que trata apenas das partes do discurso (ou da morfologia).
O mais importante gramático, entretanto, é Apolônio Díscolo (II séc. d.C.), que foi considerado pelo notável gramático romano Prisciano de Cesareia[2] (480?-530?) como “Grammaticorum princeps” (príncipe dos gramáticos). A gramática de Díscolo só surgirá no II século depois de Cristo, que desenvolve principalmente o estudo sobre a sintaxe da língua grega. Ou seja, muito posterior ao apóstolo Paulo. Quando Paulo analisa o fenômeno da glossalalia, fala de sua própria experiência linguística, pois ele era poliglota (v. 18: “falo mais línguas do que vós todos”). Como missionário, Paulo viajou e morou em muitos lugares distintos, passando por povos cujas línguas nem ele mesmo entendia, mas, com base em suas observações, ele conclui que nenhum idioma é sem significação. Toda língua tem que fazer sentido para a comunidade que a usa. Cada língua tem seu próprio significado. Só os crentes de Corinto (e por extensão os pentecostais e neopentecostais de nossos dias) estavam inventando uma língua sem sentido!
Paulo não é linguista, mas investiga o que é “língua”. Agora ele usa outro viés: o que é ser estrangeiro. Por ser missionário itinerante e viajar por muitos países, ele tinha plena noção das diferenças linguísticas. “Se eu ignorar o sentido da voz (phonôn = idioma), serei bárbaro para aquele a quem falo” (v. 11). E vice-versa. Dessa constatação, Paulo retira mais uma aplicação para a igreja de Corinto: “Assim também vós, como desejais dons espirituais, procurai abundar neles, para edificação da igreja” (v. 12).
6. Orando com o espírito e com a mente. Nos versos 13-15, parece que Paulo está dando margem à concepção da glossolalia como fenômeno extático. Mas isso seria um grave problema escriturístico: desse modo Paulo estaria aprovando a distorção coríntia e desenvolvendo uma concepção do dom de língua divergente de Lucas, conforme exposto em Atos 2 e nas demais manifestações glossolálicas de Atos. Na verdade, Paulo pode estar usando um argumentum ad hominem. Algo assim: Há pessoas que cantam perfeitamente uma música em inglês, imitando os sons da língua inglesa, mas não sabem nada de inglês nem o que está cantando. É correto um crente cantar em inglês na igreja quando nem ele sabe o que está cantando? Ele pode cantar bem, se emocionar cantando, emocionar o auditório, mas a mente fica sem fruto. Não tem como dizer “amém”, pois não se sabe do que se está falando. É disso de que Paulo está tratando.
7. Inversão coríntia. Paulo coloca-se em oposição à igreja de Corinto. Paulo não diminui o dom de línguas por ressentimento. Ele dá graças a Deus por possuir esse dom. E fala mais línguas que todos os crentes coríntios. Eles estavam dando ênfase demais ao dom de línguas. Era uma forma de prestígio e de destaque espiritual falar na igreja em outros idiomas. Mas, para Paulo, isso não passava de puro exibicionismo. Paulo diz: “Quero falar na igreja cinco palavras na minha própria inteligência, para que possa também instruir os outros, do que dez mil palavras em língua desconhecida” (v. 19). Paulo com certeza não era pentecostal”!
8. As línguas como sinais para os infiéis – (v.21-25). Paulo chama a atenção dos coríntios de como o dom de línguas foi dado pelo Espírito como cumprimento profético (Is 28.11-12), tendo-se efetivado principalmente no Pentecostes. Deus disse que falaria a seu povo rebelde por meio de estrangeiros, que falassem línguas diferentes. O dom de língua se encaixa nesse contexto.
9. A superioridade do dom de profetizar – (23-25). Para Paulo, o dom a que todos os crentes deveriam aspirar é o dom de profetizar, pois pela pregação e ensino do Evangelho as pessoas serão convencidas a adorar a Deus, reconhecendo a presença do Senhor no meio deles.
10. A ordem no culto – (v.26-40). Finalmente, Paulo exorta a igreja a ter ordem no culto. Que fizessem tudo para edificação: “Faça-se tudo para edificação” (v. 26b). Quem falasse em línguas, que traduzisse. Que cada um falasse por sua vez, e não vários ao mesmo tempo, provocando balbúrdia e confusão no culto. Que os irmãos “julgassem”, “examinassem”, cuidadosamente o que cada um estava falando. Que não houvesse exagero ou descontrole emocional, pois o profeta tem que controlar o seu espírito! E, finalmente, que as mulheres ficassem caladas na igreja, para que não se assemelhassem às sacerdotisas pagãs de Afrodite, “porque Deus não é Deus de confusão” (v. 33).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos vivendo tempos difíceis, como profetizado por Paulo em 2 Timóteo 3:1. Há muitos falsos profetas envergonhando o Evangelho de Cristo em nossos dias. Jesus nos advertiu sobre os falsos profetas:
Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores. Vocês os reconhecerão por seus frutos. Pode alguém colher uvas de um espinheiro ou figos de ervas daninhas? Semelhantemente, toda árvore boa dá frutos bons, mas a árvore ruim dá frutos ruins. A árvore boa não pode dar frutos ruins, nem a árvore ruim pode dar frutos bons. Toda árvore que não produz bons frutos é cortada e lançada ao fogo. Assim, pelos seus frutos vocês os reconhecerão! (Mt 7:15-20).
Que possamos ter discernimento e maturidade para não apoiar falsos ensinamentos que estão penetrando em nossas igrejas. E não deixemos de pregar o Evangelho puro e genuíno de nosso Senhor Jesus Cristo!
Pr. Carlos Magno Vitor da Silva
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REFERÊNCIA
BECHARA, Ivanildo. Moderna gramática portuguesa. 37.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira?/Lucerna, 2009.
LOPES, Hernandes Dias. 1 Coríntios - Como resolver conflitos na igreja. São Paulo: Hagnos, 2008.
RAMANZINI, H. Introdução à linguística moderna. São Paulo: Ícone,1990.
SANTIAGO, Emerson. Corinto. Disponível em:<http://www.infoescola. com/grecia-antiga/corinto/>. Acesso em: 04 jun. 2016.
[1] Extático = “caído em êxtase; causado por êxtase ou que envolve êxtase; encantado, enlevado, maravilhado, forte emoção" (Dicionário Google).
[2] Autor da Institutio de Arte Grammatica, em 18 volumes, gramática do latim que perdurou por toda a Idade Média (RAMANZINI, 1990).
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