Folheando algumas crônicas antigas sobre a criação de minhas duas filhas, Mitca e Naomi, deparei-me com os registros das muitas conversas que tínhamos durante e após o culto familiar, em 2009, quando morávamos em Porto Alegre. Confesso que, dentre as várias atividades do dia-a-dia durante o crescimento das meninas, havia uma em especial que me fazia suar frio quase todas as noites. E não era tomar banho gelado, encarar a louça suja a ser lavada ou preparar a janta. Era ao período de culto familiar, ao contar histórias às minhas filhas. Na época elas estavam com a idade de quatro e cinco anos e meio (a diferença entre elas é de pouco mais de um ano e meio), o que me fazia estar alerta todo fim de dia, à espera do poderia vir a acontecer.
Todas as noites após jantar, tomar banho, brincar, escovar os dentes e do momento da “lutinha” (no qual as duas sapecas insistiam em brincar de lutar, com direito a pulos em meu pescoço e muitas cócegas) nos aquietávamos e eu passava a contar uma história da Bíblia, de forma sistemática (e mais alguma outra se não tivessem conseguindo dormir, após a oração). Um expectador externo, que não conhecesse Mitca e Naomi, ao ouvir sobre essa reunião diária poderia pensar que era um momento de tranquila reunião familiar, quase idílica, com imagens mentais de um pai contando histórias, filhas ouvindo atentamente e sorrisos para todo lado. Nada mais distante da realidade à época, pois o inesperado estava sempre à espreita.
A rotina era sempre a mesma: havia todo o trabalho de aquietá-las, pois estavam agitadas pelas brincadeiras. Depois, quando finalmente deitadas ou sentadas em suas camas, havia invariavelmente os pedidos de última hora (quero leite; cadê a água? Senta perto de mim? Cadê a mamãe? etc), seguido de uma tentativa de minha parte em relembrar a história da noite anterior. Aquietadas, ao começar a história estava ciente de estar diante de uma platéia exigente e curiosa e sem qualquer garantia dos rumos que as perguntas tomariam. Assim, respirava fundo e dava início ao cultinho familiar.
E como era a metodologia que empregava? Durante a explanação, facilitava a linguagem, explicava termos, contava em tom que despertasse seus interesses, (dependendo da história fazia caras e bocas, sons e vozes), até que vinha a primeira pergunta, em geral da parte da Mimi, a primogênita. Quando começava a responder, não raro, a Naomi interrompia com outra pergunta sobre a resposta que estava dando e extrapolava para qualquer outra direção. Se fosse uma pergunta fácil, tentava responder e continuar a história, se fosse difícil tentava deixar para o final, quando fazia as aplicações. Se era uma pergunta absurda, bem... invariavelmente teria que interromper uma crise de riso que se instalava. A essa altura do estudo já estava suando frio...
Na maioria das vezes as perguntas (e afirmações) eram de uma simplicidade absurdamente complexa e estarrecedora, como no episódio em que Esaú trocou seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas (Papai, não tem sentido! Como ele pôde ser tão bobo? Como ele não percebeu que seus direitos eram mais importantes? Ele gostava tanto de lentilha assim?) ou quando o Senhor Deus mandou que Abraão sacrificasse a vida de seu filho, Isaque, para provar seu amor por Ele (Por que Deus queria saber isso de Abraão? Ele sabe todas as coisas e já sabia que Abraão o amava. Por que queria prova algo que Ele já sabia?). Nem sempre eu conseguia traduzir em termos simples, adequados à idade das duas, as perguntas que me faziam, mas não me cansava de tentar (e como pesquisador esse desafio me trazia alguma alegria e também satisfação intelectual). Frequentemente me alegrava com a qualidade das perguntas, pois me forçavam a meditar na essência da minha fé e formulá-la de maneira simples e clara (creio firmemente que esta essência não está além do alcance da compreensão de uma criança). Outras vezes ficava profundamente tocado pelas conclusões que chegavam e pelo carinho que demonstravam ao entenderem alguma história. E volta e meia as implicações levavam a direções absurdas e inusitadas. Muitas vezes me pegava pensando que eu mesmo nunca teria pensado no tipo de pergunta que formularam. Muitas das respostas que procurava dar às minhas filhas me esclareciam mais do que poderia esperar. Algumas dessas respostas se mostraram fundamentais para as muitas questões (tidas como) “complexas” que os alunos me faziam, tanto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul quanto no Seminário Teológico Batista do Rio Grande do Sul. No final são essas questões de alarmante simplicidade que realmente importam e que faz diferença no crescimento da fé de nossos filhos.
Para os que estão curiosos, abaixo alguns destes episódios para ilustrar nossas conversas “teológicas” de todas as noites.
Um grande e querido amplexo a todos!
(papai, o que é amplexo? É abraço! Então por que não diz logo abraço?)
---------------------------------
1. Fazendo surpresa
Naomi e sua mãe, em altas conversas teológicas após o cultinho:
- Mamãe, onde está o Espírito Santo?
- Está em nós, no nosso coração.
- Mas eu não posso vê-lo. Por que não posso vê-lo Mamãe?
- Minha filha, não dá para vê-lO aqui nesta terra.
- No céu nós vamos poder vê-lo?
- Acho que sim
- Acho que Ele quer fazer surpresa, né?
- Como assim???
- Ele só vai se mostrar lá no céu, quando a gente chegar. Quer fazer surpresa.
2. Casando com a Igreja
Terminando o cultinho familiar, bombardeado por uma série de perguntas difíceis sobre como será nos últimos dias quando Cristo estiver voltando, sem me atentar para as palavras concluo:
- E assim o Senhor Jesus virá para encontrar-se com sua noiva nos ares, minhas filhas.
- Que noiva?
- A igreja
- Jesus vai casar?
- Iiii! Nunca tinha falado para vocês? – já antevendo problemas me recrimino internamente pelo uso displicente do termo – A igreja é chamada de “A Noiva de Cristo”.
- Jesus vai casar com uma Igreja?
- Não. A Igreja – nós os filhos de Deus – se reunirá para sempre com Jesus, como um noivo e sua noiva
Sem atentarem para a resposta, começam animada conversa:
- Mimi, Jesus vai casar!!
- E vai ser com uma igreja, Naomi. Como será que uma igreja anda?
- Ele é solteiro e vai casar.
- A igreja vai entrar vestida de branco na igreja. Que engraçado.
Preocupado com o rumo da alegre conversa intervenho:
- Minhas filhas, a Igreja somos nós. Ele não vai casar com um prédio.
- Ele vai casar com todos nós? Ao mesmo tempo?
- Não, isso é um modo de dizer. A Igreja, que somos nós, se reunirá naquele dia para sempre com o Senhor Jesus, como um noivo e sua noiva se reúnem no altar no dia do casamento.
- Mimi, Jesus vai casar com o Papai!!
- E com a Mamãe, Naná. Ao mesmo tempo!
- E com a igreja gaúcha...
- Vai casar com a igreja na igreja!
- Ele é solteiro...
A cada afirmação achavam mais engraçado o quadro. Terminaram com uma crise convulsiva de riso que durou vários minutos. Só pude suspirar e esperar. Ai, ai, ai!
3. O caso de Noé
Ao preparar a mesa para o jantar, a esposa lembra animada:
- Kel, vamos experimentar aquele vinho que a Paulinha nos deu?
A família da Paula Marson, dona de uma vinícola, uma tradição dos ítalos-gaúchos, nos trouxe alegremente, um dia, uma garrafa para experimentarmos, talvez achando que fôssemos experts no assunto (eu não sei sequer a diferença entre um cabernet, uma champagne e um espumante popular).
Dei ok, mas avisei que apenas provaria para não dizer que não tomei. Durante o jantar, a esposa, com naturalidade, se serve de meia taça e me oferece um gole. Tomo um pequeno gole e começo a tossir fortemente fazendo uma careta e renuncio a qualquer outra tentativa. Realmente não sirvo para vinho e outras bebidas alcoólicas.
As meninas que tudo viam acharam divertida minha reação e riram bastante. Contudo, quando viram a mãe tomar calmamente seu cálice de vinho, sem tossir ou fazer careta, começaram um inesperado diálogo para o desespero da somelier:
- Mamãe, a senhora vai tomar esse vinho? – começa Mimi om uma ruguinha na testa.
- Vou sim.
- Tem certeza?
- Tenho, já estou tomando.
Com os olhos meio tortos, Mimi volta a olhar seu prato, claramente incomodada. Minutos depois volta à carga:
- Mamãe, a senhora tá tomando vinho mesmo?
- Qual é o problema?
- Vai ficar bêbada, não é, Naná?
- É sim. Vai ficar sim. Ieecaa! – e caçula faz uma cara de nojo como se a mãe estivesse bebendo água da privada.
- É só um pouquinho. Não vou não.
- Mas faz mal!
- Ai, ai, ai... Já estou me arrependendo de ter aberto essa garrafa. Vinho não faz mal não, se for um pouquinho só. Não é, Kel?
Até então, eu tinha evitado entrar naquela discussão e cheio de dedos respondo, com a voz quase sumida, olhando mais para o prato que para a cara das mulheres na mesa.
- É... só um golinho não faz mal...
- Mas mãe, olha o que aconteceu com o filho de Noé! Na tenda! – Afirma Mitca.
- Que filho?
- O filho. Na tenda!
- Que tenda? - e com a expressão de interrogação, olha para mim pedindo socorro.
Com as sobrancelhas levantadas e um tímido sorriso, esclareço:
- Ontem à noite a história foi sobre a família de Noé, depois do dilúvio. Sabe como é... Noé tomou vinho, ficou bêbado, Cam viu o pai nu, Canaã foi amaldiçoado. Bem, sabe como é... Você está tomando vinho, logo...
- Eu não vou ficar bêbada que nem Noé! – Responde com exasperação
- Mamãe, você vai ficar pelada? - Pergunta a Naomi à queima roupa.
- Não vou não! Claro que não!
- Tem certeza que não vai? Tem mesmo? - Retruca a Mimi, ainda com a ruguinha na testa e um olhar de quem duvida da resposta.
- Por que fui abrir essa garrafa de vinho?...
- É mesmo, mamãe, por quê? – Termina a Mimi.
- Ai, ai, ai...
4. Um problema de interpretação
Durante um culto na Igreja Batista Gaúcha, em Porto Alegre, no momento dos pedidos de oração, o dirigente está encorajando a assembléia a compartilhar seus pedidos:
- Irmãos, temos agora um momento de intercessão. Tragam seus anseios à presença de Deus.
Baixinho, Naomi se volta para a mãe e, vivamente surpresa, pergunta:
- Mamãe, você trouxe seus seios?
- Trouxe sim, os dois!
- Onde estão, Mamis?
- Aqui, ó!
Só ouço as risadinhas abafadas entre as duas durante o restante do culto.
5. Super-filha
Certa noite, na primeira semana de julho, após contar a história da bíblia, orar, tomar seu leite, cantar músicas e hinos, a Mimi continuava a não conseguir dormir e não conseguia se acalmar no quarto.
Eu já estava cansado, com frio e sem paciência. Estava ela com medo de ficar sozinha no quarto, sem conseguir dormir. Pediu-me que contasse uma última história. Retruquei-lhe que já havia contado duas e que já havia passado da hora de dormir e que estava muito cansado.
Ao dar um último beijo de boa noite, percebi sua agonia em ficar só. E como sempre me lembrei das tantas noites sem dormir quando pequeno, nas quais queria alguém perto e apertou-me o coração. Disse-lhe então:
- Ok, contarei uma última história. E ao terminar quero te ver dormindo. Ok?
- Ok! Pode ser uma de princesa?
- Mimi, papai não consegue pensar em nenhuma história de princesa agora, mas vou te contar uma história dos quadrinhos que me marcou bastante quando eu era pequeno.
- É de terror?
- Não. A história começa com um cientista que amava profundamente seu único filho e sabia que tinha pouco tempo para salvá-lo...
E durante vinte minutos contei a única história que me veio à mente cansada, naquela fria hora da noite: como um pequeno alienígena foi enviado por seu pai à Terra, do estranho planeta Kripton e que, mais tarde, viria a ser conhecido como o superman (sim, foi a única que me veio à mente. Fazer o quê? O nerd cansado que habita em mim falou mais alto)
Ao fim da história a Mimi estava claramente emocionada. E perguntou-me?
- Por que o pai e a mãe dele não vieram com ele no foguete para terra?
- Não havia tempo de fazer um foguete maior, filha. Só pensaram em salvar seu filho e não em si mesmos.
- Mas por que fizeram isso?
- Porque eram pais amorosos. E pais amorosos sempre pensam primeiro na segurança de seus filhos. Quando eles tiveram que decidir entre a vida de seu filho e a deles, decidiram corajosamente pela vida do pequeno Kal-El.
- Eles amavam muito ele, não é mesmo papai?
- Sim, filha. Qualquer pai que ame verdadeiramente seu filho deve estar disposto a dar a vida por ele, se for necessário.
Ela ficou em silêncio, como se estivesse digerindo essa verdade. Depois, com uma voz embargada, porém firme, me disse:
- Papai, se um dia for necessário, e eu estiver em perigo, não quero que dê a vida por mim.
- Por que não minha filha?
- Sua vida é mais importante para mim. Eu ficaria muito, muito triste sem ter você por perto – E com suas duas mãozinhas apertou fortemente minha mão.
Fiquei sem palavras, engasgado e emocionado. Dei-lhe um longo beijo na testa e disse-lhe baixinho:
- Você é realmente uma super-filha. Tenho muita alegria de ser seu pai.
Só consegui ouvi-la dizer baixinho “meu papai”, e o alivio suave da pressão das duas mãozinhas. Ela havia mergulhado em um sono profundo e tranquilo.
Dr. Kelson Mota T. Oliveira
Lindo texto.
Que belas estórias.
Realmente, as crianças conseguem enxergar coisas que deixamos de perceber quando crescemos. Perguntas que de tão óbvias, esquecemos de responde-las, e porque deixamos de responde-las não aprendemos com elas.
"Esaú trocou seu direito de primogenitura por um prato de lentilha." As crianças têm razão, quantos não são os pratos de lentilhas que consumimos durante a vida em troca de algo de maior valor?
Mateus 18:3
e disse: — Em verdade lhes digo: se vocês não se converterem e não se tornarem como crianças, de maneira nenhuma entrarão no Reino dos Céus.
Deus abençoe, meu irmão.