A vida, neste mundo decaído além de ser difícil, por vezes é cruelmente irônica. Há dias em que tudo dá errado. Há outros em que você, qual desastre ambulante, erra tudo, até a porta da sua sala. Há também aqueles dias em que as todas as coisas resultam totalmente certas, apenas para revelar, em toda sua glória, um erro fundamentalmente tosco ao fim do processo. Em todos os casos sempre de forma inesperada e desesperada. Como dizem alguns irmãos pentecostais “só Jesus na causa”. Nessas horas de aflitiva frustração, me vêm à mente a frase, parafraseada de uma observação do engenheiro aeroespacial americano Edward Murphy, “se algo pode dar errado, dará” – a famigerada Lei de Murphy. Em sua essência, essa “lei” advoga que se há alguma probabilidade de algo vir a falhar, certamente falhará em algum momento e, nesse caso, no pior momento de modo a causar o maior dano possível.
Obviamente que não há uma base física para esta lei – a qual nem mesmo pode ser chamada de lei –, mas sendo fiel a seu próprio postulado, mostra-se correta, quando deveria apresentar-se errada. Seu escopo transcende o senso comum e desafia as probabilidades. Se a geometria insiste em afirmar que uma reta é o menor caminho entre dois pontos, a lei de Murphy preconiza que um atalho é sempre a distância mais longa entre dois pontos. Se a teologia ensina que tudo é possível para o que tem fé e não tem medo de trabalhar duro, a lei de Murphy insiste que nada é impossível para quem não tem que fazer o trabalho. Se a medicina enfatiza que ciclismo é bom para saúde, a cínica lei afirma que não importa para onde você vai pedalar, será sempre morro acima e contra o vento. E se for ladeira abaixo, será sem freio, asfalto quente e você terá esquecido o capacete. Na percepção desta lei antinatural e contra-humana, mas totalmente pessoal e experimental, há sempre um quê de revanchismo, de golpe rasteiro, de murro nas costas.
Há pessoas que se sentem particularmente perseguidas pela lei de Murphy, e no recôndito da amargura e silêncio do coração juram, de pés juntos e mãos levantadas, que Deus e o universo conspiram contra seus flagrantes esforços para levar a cabo uma tarefa bem-sucedida. Quem de nós, em algum momento da vida, não terá experimentado algo desta síndrome de perseguição?
O exemplo mais corriqueiro da lei de Murphy é a observação amargurada da fila ao lado sempre andar mais rápido. E a aplicação mais simples é a relação tempo-necessidade, também conhecida como princípio da entrega. O desenrolar é simples: a entrega especial dos Correios alardeia que o prazo é de um a dois dias para chegar. Se a encomenda é um pacote promocional de banco te empurrando algum cartão de crédito (que você não quer), este será entregue na hora em que você estiver presente em casa, geralmente em seu momento de descanso. Entretanto, uma encomenda demorará mais de dez dias (úteis) no caso de você depender urgentemente da entrega (e nas três tentativas de entrega não haverá ninguém em casa para recebê-la, forçando-o a ir buscar na agência no horário de pico de uma sexta-feira, com uma fila quilométrica, na hora em que o ar-condicionado estiver quebrado). Uma variante deste exemplo reza que a probabilidade de uma fatia de pão cair com o lado da manteiga virado para baixo é proporcional ao valor do carpete de sua casa, ou que um objeto é mais facilmente derrubável proporcionalmente ao seu valor. As versões mais cínicas indagam sobre a misteriosa atração de um prato de sopa por uma gravata limpa, ou o motivo das coisas boas serem ilegais, imorais ou engordantes.
A aplicação da lei de Murphy que mais presencio, diz respeito a meus alunos na universidade, em dia de prova:
- Professor, fui mal na prova. Tem como fazer uma substitutiva?
- Infelizmente não. O que aconteceu, não estudaste?
- Eu faltei exatamente a aula em que o senhor o assunto da primeira e da segunda questão.
- Não estudaste pelo livro?
- Eu estudei, mas foi um outro, que não tinha esse assunto.
- E as outras questões?
- Eu estudei e sabia tudo, mas na hora deu um branco e não consegui lembrar como resolvia. Estava nervoso, sabe como é...
- Por que nervoso?
- Justamente hoje o carro do meu pai deu problema e tive que vir de busão lotado. Cheguei em cima da hora e tive que vir correndo do ponto para cá, achando que já tinha perdido a hora. Entrei nervoso.
Nessas horas, fico em silêncio, tentando discernir quanto há de verdade e de Murphy, por mais improvável que seja o depoimento.
Nas bancas de avaliação a lei de Murphy é impiedosa. Em geral o obscuro artigo de uma desconhecida revista, no qual o aluno usou para compor parte de sua introdução, é exatamente o artigo que um dos membros da banca defenestrou em outro artigo com o intuito de mostrar a inutilidade do uso de certa metodologia. Murphy total. Já estive em banca em que um aluno de doutorado, por simples descuido, inverteu a condição inicial de um fluxograma crucial para sua tese e, por distração, defendeu brilhantemente sua apresentação baseado neste critério errado. Infelizmente um dos membros da banca enxergava mal e na argüição pediu para ler novamente o fluxograma, conforme estava na tese escrita, e não segundo a apresentação. O erro foi descoberto, o aluno humilhado em praça pública, e a brilhante arguição errada teve que ser novamente reapresentada, de forma trôpega e insegura. Após a defesa, ele nos confidenciou:
- Sabia que algo estava errado, pois na tese, com o critério correto não consegui dissertar tão bem quanto defendi com o critério errado.
Coisas da lei de Murphy.
Há sempre uma variante da lei de Murphy sob medida para você. No meu caso são os, ãahh, como direi... doidos. Ou nesses tempos politicamente corretos, os mentalmente necessitados ou intelectualmente desassistidos. Não importa onde eu esteja, sempre alguma pessoa se aproximará para puxar conversa e, invariavelmente, será alguém mentalmente perturbado ou confuso. Seja em uma estação rodoviária, em um consultório médico, na fila do supermercado, na padaria, durante o culto, ou mesmo em um coffee-break após uma palestra, alguém sempre se aproximará e buscará travar um diálogo, do tipo:
- Oi, tudo bem?
- Eer..., hã, tudo – e já começo a suar, imaginando o que virá a seguir.
- Você gosta de manga? Já comeu manga com chocolate?
- Não, não comi...
- Como não? Você tem cara de quem gosta de manga com chocolate...
E por aí vai...
Exagero? Que nada, eis algumas situações reais:
***
Outro dia no supermercado, escolhendo um pote de manteiga, um simpático senhor ao lado me interpela:
- Ei, você já viu essa outra marca? Está baratíssima.
- É... é mesmo – dou um sorriso e levo a mão para pegar a marca que já tinha escolhido.
- Ei, amigo, você não vai levar essa manteiga?
- Não. Vou levar essa outra aqui, ó – e faço cara de quem já vai embora.
- Mas essa é mais cara! Leve essa! – me responde em tom ofendido e raivoso.
- Obrigado, vou levar essa outra. É uma novidade e quero experimentar – respondo com cuidado.
- Você é quem sabe! Você é quem sabe!! – responde meio alto, quase gritando, e sai pisando duro, fazendo cara feia. Algumas pessoas me olham como se eu tivesse culpa no cartório.
***
Certa feita, fui dar uma palestra em uma igreja em Sapucaia/RS, sobre fé e ciência. Mal comecei a falar, entra em cena um morador de rua e senta-se no primeiro banco. Nada de mais. Cinco minutos depois levantou a mão e perguntou uma bobagem qualquer. Respondi. Mais cinco minutos, outra mão levantada e outra pergunta qualquer. Já vi que a história terminaria mal. Seguida à resposta, deitou no chão, à frente de todos, e como um bebê, ficou a brincar com as pernas e emitir ruídos de bebê. A palestra só continuou depois de sua saída aos berros do recinto, conduzido com mansidão pelos presbíteros. Tinha que ser comigo...
***
Em outra ocasião, em Porto Alegre, presente a um culto, o pregador (completamente fora de si) falou a maiores bobagens que já vi sair de um púlpito, a ponto de defender que Neemias foi o personagem mais misógino e cruel do Antigo Testamento e que seu livro deveria ser retirado da Bíblia. Ao terminar o discurso (porque pregação não era), em dedo em riste, escolheu a mim (logo a mim, entre tantos. Por que eu?) e convidou-me a tecer comentários sobre os pontos positivos de sua “brilhante exposição”. À minha educada recusa, respondeu que não sairia dali até que ouvisse minhas conclusões. Silêncio no templo, todos esperando meus comentários. E assim, com clima pesado, a contragosto, lá vou eu, de pé, no meio da igreja, enumerar todas as loucuras que o infeliz pronunciou e mostrar o porquê de serem loucuras. Quase terminou em confusão.
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1995, em Sampa, na estação de metrô da Sé, horário de pico. Entre milhares de pessoas observo um cidadão cortar caminho e parar exatamente na minha frente.
- Você já conhece a Deus?
- Sim – respondo com certa apreensão.
- Sabe seu nome? – os olhos estranhamente fixos nos meus.
- Sim – e começo a torcer para que o metrô chegue logo.
- Qual é? – e chega perto.
- No original hebraico ou em português? – tento confundi-lo para ganhar tempo. O metrô já se faz ouvir ao longe.
- Tanto faz. Qual é? – e se aproxima cada vez mais.
- Ãahh...Senhor? – arrisco.
- É Jeová!!! Jeová!!! Você não conhece a Jeová. Ele só ouve quem sabe o nome dele! Quem o conhece! Você não conhece o nome dele, logo ele não te conhece! Jeová, Jeová!
Entro rapidamente no metrô na esperança de não ser seguido. Tinha que ser justo comigo?
***
Em outra ocasião, visitando o Pr. Reginaldo Cresêncio, em São Carlos/SP – testemunha viva dos efeitos desta variante da lei de Murphy em minha vida – e com pouquíssimo tempo para por o papo em dia, nos sentamos em uma cafeteria quase de frente para a praça XV. Mal as bebidas são postas na mesa, alguém se aproxima e senta em uma das cadeiras:
- Posso falar um pouquinho com vocês? – Sorriso largo e olhos vidrados. Rapidamente sei que a conversa não será rápida e o papo coisa de doido. Saio na frente e respondo sem dar chance ao meu amigo pastor, sempre cioso em ouvir os outros:
- Olha, não leva a mal, tenho pouquíssimo tempo com meu amigo e não dá para conversar agora.
- É rapidinho. – e me ignorando completamente, dirige sua atenção ao meu amigo – O senhor é pastor, não é mesmo? – O sorriso largo e olhos vidrados.
- Sou sim. O que gostaria de falar? – e lhe lanço um desesperado olhar que diz “ei, esse cara é um dos doidos que atraio, não percebeu? Cai fora!”
E nos próximos 25 minutos (só tínhamos 30), o homem tentará nos convencer que a seita religiosa que professa (e que nada tinha a ver com nossa realidade), sofreu divisão por causa da discordância com um dos ensinamentos de seu líder (como??), mas que ele está na metade correta (e daí...??), e que isso nos fazia irmãos em Cristo (não entendi exatamente como ele chegou a essa conclusão). Como a conversa (monólogo) não tinha fim, já aborrecido, intervi:
- Você concorda então que seu líder estava errado? Sim ou não? – e não deixo margem para elucubrações mentais.
- Ãaaah... sim.
- Então você rejeita seus ensinamentos, e abraça a Bíblia como única verdade. Sim ou não? – Sustento um olhar implacável.
- Ãaahh... não. Ele tem muita coisa boa. Você já leu o livro... – e antes que comece um novo monólogo, interrompo:
- Então, não somos irmãos. Dá licença, tenho apenas cinco minutinhos para terminar a conversa com meu irmão aqui.
- Então, vamos continuar depois a conversa, não é mesmo? – e me lança novo sorriso largo, acompanhado de olhos vidrados e esbugalhados.
Com um olhar cansado desisto da conversa. Só me resta tomar o restinho de minha bebida e refletir sobre todos os meus pecados.
***
Se somos provados por Deus, testados pelo mundo, atribulados pelas circunstâncias ou tentados pelo diabo, isso não é prova cabal que haja algum tipo de lei mesquinha que conspira contra nós. A percepção da lei de Murphy é, na grande maioria das vezes, fruto de uma concepção exagerada de nossa própria importância, aliada à nossa recusa interior em descansar na soberana providência do Senhor Deus, mesmo nas situações mais corriqueiras. Quanto menos peso damos a essas pequenas situações que testam nossa paciência, e abalam nossos nervos, tanto menor serão seus efeitos em nossos corações. Mas confesso que se o Senhor puder me enviar menos ãah, como direi... doidos, poderei ficar menos tenso toda vez que adentro em um ambiente novo. Nunca se sabe...
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Kelson Mota T Oliveira, congrega na Igreja Batista Constantinopolis, Manaus AM.
Palestrante, professor, pregador, escritor com 2 livros publicados.
Responsável por um programa na ConstantTV sobre fé e ciência.
É casado e tem duas filhas alegres e curiosas.
Doutor em Físico-Química pela IQSC-USP, na área de Química Teórica/Mecânica Quântica Molecular.
Desde 1992 é professor de carreira (GQTC-UFAM/CNPq).
Atual vice-presidente da Sociedade Brasileira de Design Inteligente (TDI-Brasil).
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